domingo, 31 de julho de 2011

Tramas

esperando - quadro do pintor Alma Tadema



No sonhar de Penélope me deixo, tecendo a renda da esperança, o momento seguinte, o que virá logo depois em outro espaço e tempo.

Não tardes, pois meus fios embranquecem e quero que me vejas bela. Mas, cedo ou tarde e, mesmo noutra veste, me reconhecerás entre todas as noivas da esperança, pela aura deste meu amor do qual és tão íntimo.


escrito em 12/04/1982

Espírito de Mãe



O acidente grave acabara de ocorrer. Uma mulher acenava em prantos. Pararam. Ela implorava que lhe salvassem o bebê dentre as ferragens. Pegaram a criança viva, dormindo entre os braços do cadáver da mulher que, naquele instante, lhes pedira socorro na estrada.


escrito em 7/10/2001

Ausente



A festa era em sua homenagem. Conseguiu fazer-se presença absoluta. Não foi.

Lápide



E nada haverá senão retângulos de pedra e cimento a cobrir nossas angústias e vaidades, a sufocar todas as esperanças, deixando escrito, apenas, um nome e a data em que abdicamos de lutar.

Fogo

Os 4 elementos - FOGO


Se quero ser suave, uma pergunta se impõe: Em que porão, guardo a paixão?


texto muito antigo

Venenos



não era moço e a saúde piorava com a quantidade de química com que os médicos o intoxicavam. Cansado de viver sem energia, optou por abandonar o tratamento. Largando os remédios talvez a morte viesse logo e mais fácil, liberando-o da tortura. Uma semana depois se percebeu bem disposto, alegre e mais vivo do que jamais!


escrito em 29-07-2011

quinta-feira, 28 de julho de 2011

Pátrio poder



Foi por ali, disse ele à mulher que acabara de descer a rua em prantos, procurando pelo filho. omitiu que a criança ia pela mão de um bêbado com quem muito se parecia.


escrito em 26-07-2011

terça-feira, 26 de julho de 2011

Tudo azul



Ao despertar começou a se despir e estranhou o tamanho dos pés. Descalços, os pés macios e imensos cobertos de pelos azuis, lhe deram uma sensação de segurança até então desconhecida.

Cada peça de roupa retirada deixava entrever um ser desconhecido no qual havia se tornado. O corpo sólido, macio e aconchegante, o agradava muito. Afinal, tateou o rosto e descobriu a cabeça pequena com traços bastante delicados. Firmeza e felicidade, foram sensações tão grandes que, sem vacilar, alçou o primeiro voo.


escrito em 24-07-2011

domingo, 24 de julho de 2011

Opções


Camisas e calças diziam para os pares de meias que elas tinham que sair do armário! As pobres se escondiam cada vez mais, tinham pavor de aturar o chulé dos tênis!

escrito em 18-07-2011
inspirada num tweet do Dudv.

quinta-feira, 21 de julho de 2011

Despedida



Estou aqui. Senta-te ali e me percebe, consegues? Procura ouvir meu cheiro e sentir meus movimentos, veja o que te digo e assim que estiveres satisfeita, segue. Leva-me contigo. Assim, jamais terei morrido.


escrito em 21-07-2011

quarta-feira, 20 de julho de 2011

Resgate

psyche entering cupids garden- by John William Waterhouse


Ele perdera sua alma e nem se lembrava aonde. Saiu pela cidade entrando de bar em bar, de cassino em cassino, passou pelos bordéis que frequentara e nada! Vazio e sem esperanças, sedento e exausto de tanto andar, acabou pedindo um copo dágua em uma casa modesta. No vão da porta reconheceu a mulher que abandonara e, com ela, o que buscava. Fora a única que, de fato, havia amado em toda a vida.

escrito em 17-07-2011

terça-feira, 19 de julho de 2011

Um legítimo gostar



Andava cada vez mais esquecido. Em um blog, leu um conto que muito lhe agradou. Cobriu o escritor de elogios e ao procurar o endereço para divulgar a página, descobriu que o texto era seu.



escrito em 16-07-2011

Antes só...


Norman Rockwell - café da manhã - 1938

Vivia muito bem consigo mesma, se divertia em sua própria companhia. Ao casar ficou muito isolada. Seu marido exigia atenção integral e não sabia ser companheiro. Sem tempo para estar só, soube o que era solidão.

escrito em 18-07-2011

segunda-feira, 18 de julho de 2011

O velório



O leitão fazia parte da família, crescera a brincar com os meninos.

No natal, ao ser servido assado, maçã à boca, faltou luz. Castiçais acesos, ninguém comeu. Cabisbaixos, em lágrimas, velaram o companheiro.


reescrito em 11-07-2011

domingo, 17 de julho de 2011

Solidão

Sabine e Laurent Laveder



A Lua estava pálida. Parecia não ter forças para crescer novamente. Ninguém mais olhava o céu e ela estava prestes a sucumbir em um eclipse para sempre quando, num ápice,voltou a ter brilho. Nascia um poeta.

escrito em 17-07-2011

Perfeito é estar feliz

rótulo da caixa vintage - Tom Cat -limões marca Sunkist


Andava cansado de ser gato, se achava pequeno, calmo e quieto e não gostava de seu miar indolente. Com muita , pediu que fosse transmutado. Virou girafa, desengonçada e muda. E a flexibilidade? Não mais podia enrolar-se nem saltar. Pediu nova mudança. Acordou um gato, feliz.


escrito em 17-07-2011


sábado, 16 de julho de 2011

Afinidade

Marichka (Larisa Kadochnikova)


Ele chegou desengonçado e tímido. Se aproximou, mas apenas a olhou. Ela entendeu tudo e seu olhar disse sim. Também era tímida.

escrito em 15-07-2011

quinta-feira, 14 de julho de 2011

Imaginários



Ele a criou e a amou como a ninguém mais. Ela, inexistente, se apaixonou pelo reflexo nos olhos dele e aceitou-se imago. Viveram felizes em seus enganos até que, cego de amor, ele a ignorou para sempre. Entregues a si mesmos, apagaram-se.

escritos em 12-07-2011

quarta-feira, 13 de julho de 2011

Sem fuso



Estava em Sidney quando falaram ao telefone. Era madrugada de um sábado e antes de deitar, ainda deu uma espiada no site de relacionamentos. Ao ler a notícia postada por um amigo, gelou. Era como se tivesse conversado com um fantasma. Pela hora de São Paulo ele havia morrido horas antes do telefonema.

escrito em 12-06-2011

segunda-feira, 11 de julho de 2011

As penas da história

Caïn após matar seu irmão Abel - Vidal, Henri - Marbre, 1896 - Jardin des Tulheries
Foto de Anna Schnoor


Enquanto sofria, arrependido, Cain ganhava fama e simpatia. - Pobre Cain, diziam. Castigado pelo pai.

Em outro plano, Abel pensava - Eu não deveria ter morrido, fiz meu irmão sofrer, bajulei o pai para que me preferisse e estou liberto, enquanto ele ficará para sempre amarrado à história como o invejoso cruel.

escrito em 28-06-2011

domingo, 10 de julho de 2011

Surpresa!



Chegou ante por detrás da poltrona, cobriu os olhos dele com suas mãos e fez a pergunta: - Sabe quem é?

Sob seus dedos, o rosto duro e gélido, devolveu-lhe a surpresa.


escrito em 09-07-2011

sábado, 9 de julho de 2011

Super abrigo



Quando a mãe viu os garotos prontos a saltar das alturas vestidos de super-heróis, gelou e gritou. Sem ouvir bem as palavras e temendo a surra, pularam mais que depressa para fugir do castigo. Para espanto geral, alçaram vôo direto até pousar na casa dos avós.


escrito em 06-07-2011

quarta-feira, 6 de julho de 2011

Uma nova estação



Tarde fria de Inverno. Na calçada, o toc-toc dos sapatos pesados ressoam no ritmo apressado de chegar. Um homem e uma mulher entram em casas que não são suas, despem as roupas, largam as pastas de trabalho, e se dão conta de que começam uma vida nova pela alegria do encontro. Longe das rotinas e das rusgas cansadas do tempo, a refeição é prazenteira e nem a TV é ligada. Uma boa taça de vinho e novos lençóis acolhem corpos ardentes e o sono embala o desejo de que o dia amanheça verão.



escrito em 05-07-2011

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Alma



Então ela foi se largando, se soltando e se deixou cair. Mas flutuou, ficou ali feita de ar e luz. Há muito tempo já não era deste mundo.

escrito em 04-06-2011

sábado, 2 de julho de 2011

A manta de família,




A manta de família,

guardada há anos, precisava ser lavada. Sob a água, a franja embaraçou. Ao tentar desfazer a trama, lembrou-se das moiras e foi separando fio por fio, pensando repetidamente, como em um mantra, que à cada nó desfeito, cada herança recebida seria dissolvida e o passado limpo. Ao terminar, manta seca, fios soltos, memória perdida.

escrito em 27-06- 2011

sexta-feira, 1 de julho de 2011

Espelhos

Magritte - Le Principe du Plaisir- 1937


Pela manhã um homem se olha ao espelho e ao chegar à mesa do café, em frente à sua mulher, torna-se outro. Ao sair de casa, solitário, por instantes volta a ser ele mesmo até que, ao encontrar o vizinho, torna-se outro mais. Chegando ao escritório, muda tantas vezes que precisa entrar no toalete para ver-se novamente e se recompor. Antes de voltar a casa, visita sua amante e então é todos em si mesmo e quase se perde entre os lençóis, pois para isto é que foi feito; para amar e ser amado.


escrito em 29-06-2011