terça-feira, 29 de março de 2011

O Som da segurança


Caminhava pela rua quando um som diferente e agradável me despertou a atenção. À minha frente, uma cega agitava sua bengala branca, ora com vigor, ora suavemente, entre o chão e o muro. Percebendo que dali partia encantadora melodia, perguntei o que havia em sua bengala. Soube então, que a moça, compositora, perdera a visão quando se preparava para estudar no exterior. Passado o choque e a depressão, aceitou, serenou. Seu ouvido havia sido treinado mas, sem a visão, passou a perceber os sons de forma bem mais aguçada. Retomou a carreira deixando-se guiar por suas composições.


escrito em 26-03-2011

sexta-feira, 25 de março de 2011

sabedoria infantil


A avó com mal de Alzheimer, assustava a todos com sentimentos de perseguição: Seria maltratada por alguém. A netinha tenta acalmar explicando: - Sabe mamãe, criança não tem amigo invisível? Pois é, a vovó tem inimigo invisível.


escrito em 18-03-2011

idéias da pequena Débora.

quinta-feira, 24 de março de 2011

Cochilos espertos


Quando criança via os velhos cochilando sentados, as cabeças pendentes e ficava imaginando se estariam cansados ou sem graça de viver. Agora que envelheceu e o sono vence o prumo do pescoço, sabe que caminha pelo passado unindo fios desgarrados do novelo para que a vida bordada faça sentido e gozo quando terminar a exigência de acordar.


escrito em 23-03-2011

terça-feira, 22 de março de 2011

Comportamento atávico

interferência sobre foto da peça O Pelicano

Quando nasceu o pai estava na guerra e passou anos sem conhecê-lo. Neste tempo desenvolveu forte relação com a mãe. Ao vê-la sofrer, sentindo-se culpado, delicadamente tentava compensar sua infelicidade e solidão fazendo-lhe companhia e todas as vontades. Quando casou, em pouco tempo abandonou o papel de esposo, abdicando das funções de parceiro e amante, ocupando-se apenas em tornar-se, uma vez mais, o filho dileto.


escrito em 16-03-2011

domingo, 20 de março de 2011

O aniversário

Japão - 11-03-2011




Madrugada-10 de março 2011 - Nova York.

No último andar do prédio, ela jantava no restaurante refinado festejando seu meio século de existência. Comentava estar muito feliz por comemorar com amigos novaiorquinos, pela primeira vez longe do Japão e da família. era tarde ao chegar ao quarto do hotel, mas Harumi ainda teve ânimo para ligar a TV e descobrir que estaria longe, talvez para sempre.


escrito em 18-03-2011
a partir de um fato real.

sexta-feira, 18 de março de 2011

Sem bússola

dragonflight.Jackie Morris


Sua vida parecia ser feita de fios desencapados, nós frouxos e pontas super coloridas, soltas, que ela unia ao acaso , ao sabor dos ventos ou apenas ao sabor. Os que viviam à volta ficavam às tontas, perdidos, presos, enrolados e encantados, pois era assim que sua criatividade se fazia única e plena, gargalhante, primaveril, espalhadora de beleza e confusão, tão encantadoramente caótica que ninguém sabia viver sem seu desrumo.



escrito em 14-03-2011
inspirado na Fábia

quinta-feira, 17 de março de 2011

A melancólica

desenho A. Schnoor


Era assim. Entregue, ombros caídos, cabelo lambido e sujo, braços presos às costas rejeitando qualquer contato. via pra dentro. O Sol a incomodava; a Lua se fosse negra e a aridez da roça a paisagem preferida. No casebre onde morava cultivava cactos que, ao dar flor, iam para o lixo. Foi assim até sempre e, quanto mais arqueava e envelhecia, melhor se sentia. Era sua natureza e assim viveu, como nos contos de fada, venturosa para sempre.



escrito em 16-03-2011


quarta-feira, 16 de março de 2011

O urinol


Uma noite, em meio ao sono pesado, João mudou o urinol de lugar. Acordou súbito, a perna presa no buraco onde antes havia o vaso e o quarto de baixo exposto à sua curiosidade. Soltou a perna, mas não podia evitar espiar a vida do outro, um senhor austero e antipático, com o qual cruzava toda manhã no saguão do prédio. Às noites, ao chegar, o homem parecia se despir, mas quem deitava na cama era um ser diferente. A princípio imaginou uma amante, mas apenas a criatura com fartos seios e nádegas ocupava a cama e ninguém mais. Perdeu o sono, e a vigília permitia apenas que a visse acordar, pois ao levantar, desaparecia de seu campo de visão. Rápido, João se vestia e descia, ainda a tempo de encontrar o vizinho à saída do prédio, sisudo como sempre.


escrito em 15-03-2011

terça-feira, 15 de março de 2011

A última noite

lua - desenho de Angela.


Órfã de mãe no parto. A família que a acolheu em troca de serviços, deu-lhe um quarto no sótão. Menina ainda, abria a janela nas noites de Lua e falava com a mãe, no céu, até dormir sob seu brilho. Uns dias, acordou com cheiro de flor no colchão de crina. Em noites, pensou ver uma escada de luz entrando pela clarabóia do alto. Na última acordou envolta por aquela que, em brilho azul e prata, a levava de volta a casa.

escrito em 14-03-2011

domingo, 13 de março de 2011

Sem descanso



Madrugada na avenida. Se assusta com a estranha impressão de atropelar duas pessoas, dois vultos. Para, salta e nada, nem um som, rua vazia. Noites depois, novamente freia para evitar acidente semelhante. Desta vez segue com a certeza do imaginário. A coisa se repete e o inquieta, pois é seu caminho para casa. Descobre que acontece a outros, no mesmo local. O casal não tem paz, toda noite repete a cena de sua morte na esperança de que não aconteça.


escrito em 12-03-2011

sábado, 12 de março de 2011

prisão alimentar



Ele tinha engolido os instintos, afinal era um homem racional, fino e elegante. Até o dia em que os bichos precisaram ser vomitados ou ele morreria. Colocou tudo para fora, mas continuou a sentir incômodos. Os sapos ficaram. Haviam gostado de morar em seu estômago sem feras.


escrito em 20-02-2011

quinta-feira, 10 de março de 2011

Autocentrite



Estava cansado de médicos, de remédios, sentindo-se pior a cada dia. Atravessando a rua, viu os carros avançando e pensou que seria mais rápido e fácil dar um passo em falso e acabar com tudo. Com uma guinada rápida, o motorista desviou o veículo, mas colidiu violentamente com o automóvel ao lado. Morreram na hora e ele, atônito, viveu culpado por muitos anos mais.


escrito em 07-03-2011

segunda-feira, 7 de março de 2011

Corpo Vegetariano

cmentarna plastyka - autor netiee


A família morava no campo e era vegetariana. Quando o patriarca e mentor faleceu, o sepultaram no porão da casa principal. Sobre seu túmulo passaram a nascer temperos e verduras de sabor especial e a família gratificada, passou a se nutrir dos produtos 'legados pelo ancião'.

escrito em 06-03-2011

sábado, 5 de março de 2011

singeleza


Saiu para o baile de saia lambida, colada ao corpo delicado. Como fosse carnaval, colocou no cabelo uma flor singela. O bumbo tocava ao longe. Requebrando tímida pelo bairro enfeitado, tentou parecer esperta ao olhar do rapaz que a convidou. Horas depois voltou só, fantasiada de humilhação. Violentada, saia rasgada, pernas sangrando, cabelo sem flor.

escrito em 05-03-2011

sexta-feira, 4 de março de 2011

Os bons ouvintes


Doente, sem trabalho e muito , passou a visitar o cemitério todos os dias. Sentada nas frias lápides, conversava com os falecidos. Chamando-os pelos nomes, contava suas histórias e mágoas. Quando melhorou, passou a enfeitar e fazer melhorias nos túmulos. Era como se pagasse ao analista.

escrito em 03-03-2011

quarta-feira, 2 de março de 2011

O sono da luz



A menina tinha medo do escuro. Ao entrar receosa, num buraco negro do jardim, descobriu que lá havia uma pequena luz, filtrada através de um vão da pedra. Então chamou baixinho - Luz, acorda, luz!
Ao tocar a pedra, esta se deslocou e o sol entrou inundando o espaço. Encantada, foi contar a todos que o escuro era a luz quando dormia.


escrito em 02-03-2011
para Bia