sábado, 30 de maio de 2009

Um drama qualquer

Édipo e Antígona



- Não tenhas um filho homem - alguém disse a seu pai - pois nunca mais terás lugar de honra em casa.
Depois que ele nasceu, a mãe não mais quis saber do esposo, seu pai. Dedicou-se apenas a amá-lo. Ao tornar-se consciente do drama familiar, culpou-se pelos sofrimentos paternos e adoeceu negando-se cuidados. Viveu cego, arrastando-se sobre os pés inchados.

escrito em 29-05-2009

sexta-feira, 29 de maio de 2009

futuro próximo

imagem encontrada no google



No elevador, olhando para a tela da mídia, lê o anúncio:

A MAIOR REDE DE CORRUPÇÃO DO PAÍS.

Sede em Brasília, franquia em todas as cidades.
Filie-se a nós e veja como ascender sem esforço ou estudo.

Ao descer no andar, desconheceu o ambiente. Não subira no espaço, mas no tempo.
Estava no futuro próximo.



escrito em 28-05-2009

quinta-feira, 28 de maio de 2009

Holiday photos

interferência sobre imagem recebida por e-mail



No fotolog, sob o titulo - Eu na Alemanha, estava escrito:

Vejam só! Aí estou eu em frente aqueles fornos imensos, já imaginaram que pizzas?
Ouvi dizer que neste lugar aconteceu o Holocausto, não sei o que é isto, mas acho este nome bárbaro!


escrito em 28-05-2009

quarta-feira, 27 de maio de 2009

Proteção

Egon Schiele - Death and Girl




A cidade estava cada dia mais violenta. Como trabalhava à noite e custava a chegar em casa, inventou uma roupa protetora. Em um grande saco, colou papéis, jornais, latas e plásticos de vários tipos. Levava consigo a camuflagem e ao menor sinal de perigo, metia-se dentro dela e ficava quieta em algum canto das ruas. Saiu ilesa de muitas situações perigosas, mas um dia acordou presa entre dejetos. O caminhão de lixo a recolhera.

escrito em 24-05-2009

segunda-feira, 25 de maio de 2009

Emoções inesquecíveis

imagem encontrada na web


'Novo conceito em festas infantis'. Dizia o anuncio do salão de beleza para meninas entre quatro e dez anos. Maritza levou a filha e amiguinhas para uma tarde dedicada à beleza. Além de penteadas e maquiadas como as mamães, ainda teriam direito a guloseimas e bebidinhas deliciosas. O convite avisava que, em seguida, a turminha seguiria para um outro local divertido onde poderiam exibir todo seu charme. Só não contaram a Maritza quais seriam as bebidinhas e quem esperava por tanta beleza infantil!


escrito em 25-05-2009

cada coisa em seu lugar

foto de Vorazan


Todos diziam que Dov Eggman vivia com a cabeça nas nuvens. No dia em que levou suas nuvens a andar no espaço, como todas as nuvens fazem, as criaturas do azul reclamaram daquele ser estranho entre elas. Desfez-se de tudo, permanecendo apenas com o crânio branco e liso como um ovo, pois este, sem dúvida, pertencia a todos os mundos e não causava espanto. A maioria dos seres o identificava com Mãe.

escrito em 24-05-2009

domingo, 24 de maio de 2009

nas entranhas

alone - autor,twardowskimarcin




Cora tinha sido criada como princesa. Rica, culta, educada. Quando fugiu ao controle da mãe para viver com o traficante mais importante da cidade, pensava estar sendo rebelde e muito moderna. Não tinha idéia de que seu romance, a gravidez e o retorno ao mundo onde nascera já era uma antiga história contada por muitos povos. Acabaria descobrindo que a volta aos infernos também faria parte deste destino.

escrito em 24-05-2009

sexta-feira, 22 de maio de 2009

brechó ambulante

sem título - autor - vARTislaus



Por pouco ela já nem tinha mais o que comer e onde dormir, que dirá manter o negócio onde vendia legados dos defuntos próximos. Sempre fora chamada de 'a doida' e resolveu aproveitar a fama. Colocava sobre o corpo quase tudo que ainda havia em sua velha mala e saía pelas ruas vendendo os badulaques. Pesava um pouco, mas se divertia e ainda era publicada, de graça, nas revistas. Fazia sucesso. Sempre havia alguém para fotografá-la, ouvir suas histórias inventadas e pagar-lhe um drinque.

Escrito em 22-05-2009

idiossincrasias

foto de - Vlad Listratov



Quando eles passavam pelas ruas o povo da cidade já aguardava o espetáculo. Diziam até que, sem o saber, teriam inventado o cinema. Tomek, o mais velho, enchia o espaço com letras, frases, poemas e histórias que saíam de suas orelhas e se espalhavam no ar. O outro, Tarek, ao cruzar com o amigo, reunia os textos e os dispunha sobre imagens fantásticas que brotavam de sua boca entreaberta. Todos sabiam que eles haviam nascido com limitações - O primeiro era mudo e o segundo, cego.

escrito em 21-05-2009

quarta-feira, 20 de maio de 2009

de memória

Manolo Fuster - Ximo, 1985


Fazia tempo que a pobreza tinha subtraído seu precioso bem. Para ter o que comer fora obrigado a vender sua flauta. À alma, alimentava com as notas da memória. Abraçava uma vara, cujo toque compensava a falta do instrumento que habitava sua mente. Fechava os olhos e a música fluía imaginada, preenchendo vazios e reduzindo o abismo entre seu mundo pleno de riqueza e o pobre mundo lá de fora.

escrito em 13-05-2009

Em igual compasso

Hungry for your touch - 1971- Jan Saudek




Quando ela me deixou, conheci o desespero. Quase morto, vivia preso apenas à esperança de seu retorno. Racional e dedicado às idéias, através dela descobrira meu corpo em sensações nunca experimentadas.
Certo de que ninguém poderia despertar-me igual prazer, tornei-me insistente e enfadonho, afastando-a ainda mais. Passado algum tempo, por carência momentânea ou para testar seu poder sobre mim - ela conhecia e gostava deste jogo - chamou-me à sua casa. Antevendo o gozo da paixão fui às pressas, mal disfarçando a excitação. Algumas horas perdidas em seu corpo morno e meu ser inteiro estava frio e quase enojado. Naquela noite, o fim encontrou-se em nós no mesmo espaço e tempo. Senti-me livre e novamente vivo!



Escrito em 03-03-2009- para Minguante- O FIM

segunda-feira, 18 de maio de 2009

Início e Fim na MGM



Quando criança, no cinema, esperava ansiosamente pelo rugido do Leão que abria os filmes da Metro. Saía triste, pois sempre esperou que, no final, seu herói se despedisse dela com outro bocão. De fato, nem se importava com o filme, gostava mesmo era daquele poderoso gatinho.



Escrito em 13-02-2009 para Minguante 14

sábado, 16 de maio de 2009

Timidez - Minguante - O FIM

AnnularEclipse



Minguante, quase nova, ela sabia lidar melhor com os finais do que com os começos. Sempre que era sua época de cheia, se desejava eclipse. Escondida atrás da mãe esperava o momento passar e minguava feliz!


Escrito em 22-03-2009
publicado em Minguante edição 14 - maio 2009

quarta-feira, 13 de maio de 2009

Obras públicas

anjo da morte - imagem encontrada na Web




Dirigia pela autoestrada quando divisou, em cima do grande viaduto, a figura da morte empunhando um mastro com bandeira. Enquanto a construção desabava sobre os carros, ainda conseguiu ler o letreiro: “MAIS UM MARCO NESTA PARCERIA DE SUCESSO!”



Escrito em 09-05-2009

terça-feira, 12 de maio de 2009

Filhos da Mãe




Eram quatro. Nasceram durante a guerra e nenhum deles conheceu pai, a mãe era seu sustento. Imaginavam-se fruto de amor intenso nas licenças do soldado. A mãe recebia cartas e as guardava com cuidado na antiga lata de biscoitos. Guerra finda, como o pai não voltasse, se acreditaram órfãos. Escritas por homens diversos, as cartas enalteciam o prazer que a mulher lhes proporcionara em meio aos horrores. Nenhum deles sequer mencionou filhos.

escrito em 12-05-2009

sábado, 9 de maio de 2009

Quem perde ganha



Centro médico à tarde. Elevador cheio. Entra o homem alto, vestido de Batman. A maioria prende o riso. Quando ele sai no oitavo andar os que ficam apostam, quatro contra um: - tem consulta com o Psiquiatra. O ascensorista ganha: - Errado, ele é o psiquiatra!


escrito em 08-05-2009

quinta-feira, 7 de maio de 2009

Diário de Ludmila: a partida

Pintura de Eduardo Naranjo



Quando parti o pai desmontou. Ele ganhou rosto e a mulher existiu. Não pude ver, apenas soube. Ao olhar para o álbum de retratos, as fotos amareladas se soltaram, desfeitas. Quem sabe agora, dentro da mãe, tocasse valsa?


escrito em 06-05-2009

Diário de Ludmila:em minha presença

Desnudo de mujer en el espejo - Eduardo Naranjo


Despeço-me de alguns véus, muitas culpas e vários medos. Em minha presença, rendo-me à condição de fêmea e canto, saudando a tia e o despertar de meus instintos. Assim como ela, deixo para trás a casa paterna e o pulso seguro que me fez manter às trancas, a menina que nunca pude ser. Como será minha face refletida em outros horizontes? A curiosidade ansiosa e benfazeja não respeita cautela, parto.


escrito em 06-05-2009

Diário de Ludmila: a tia

tela de Eduardo Naranjo



O sorriso da tia em seu avental de cozinha despertou-me. Embora vivesse entre nós, não se prendia às tramas. Fugia às regras pela independência e atrás do avental branco escondia trunfos. Era necessária e meu pai a enxergava. Embora menina, quieta e tonta, antevia aonde ela iria quando seu cantar me mostrava que a música soltava a alma. Ao nos deixar, a casa toda sucumbiu de inanição, mas eu já havia acordado.

escrito em 06-05-2009

Diário de Ludmila: a mãe

maternidade - Eduardo Naranjo




Lembro-me da mãe tal como neste dia, com meu irmão em seu colo macio e cálido. Era parte da mesma trama que nos prendia e ausentava. Pendente objeto nutridor, o peito exalava azedume e o cansaço a entregava ao dormente abandono. Era assim que se ensurdecia ao canto da mulher que, insepulta em si mesma, entoava um réquiem aos desejos femininos.


escrito em 06-05-2009

quarta-feira, 6 de maio de 2009

Diário de Ludmila

duran_eduardo_naranjo


Ao nos ver nas fotos do álbum de família, meu pai é apenas a força sem rosto que me prendia às regras que determinava. Nunca um afago, sempre um pulso firme. Se estava em seu colo era apenas para que registrassem a inutilidade de meu querer e a dura ausência de mim que houve em toda a minha infância.


Escrito em 05-05-2009

Um anjo protetor




Acordou no hospital, longe da mãe e muito assustada. Não largava a boneca e repetia com sua voz pequena e doce:
- obigada, obigada. Ela e a mãe tinham chegado muito feridas depois do bombardeio que destruiu o quarteirão onde moravam e, de fato, só havia sobrevivido porque a boneca que abraçava amorteceu os estilhaços da bomba que caíra tão perto.

Escrito em 05-05-2009

terça-feira, 5 de maio de 2009

Pânico

imagem do filme creep



Nunca saía de casa, passava as noites acordado e tinha medo de mulheres. Para ele, exceto a mãe idolatrada, todas eram prostitutas. Depois que a velha morreu, não teve outro jeito senão contratar alguém para os serviços domésticos. A moça do interior, submissa e ignorante, passou a ser sua doentia diversão. Criava situações meticulosamente sádicas para que ela desmaiasse de pavor quase todas as madrugadas. Então ele a despia e ficava olhando seu corpo gélido e soluçante. Foi assim que conheceu os primeiros orgasmos.


escrito em 05-05-2009

segunda-feira, 4 de maio de 2009

Angústias

foto da segunda guerra - estação de Waterloo - Londres


O marido doente morrera pouco antes de eclodir a guerra. E agora, ela se despedia do único filho, evacuado junto a milhares de crianças protegidas dos ataques aéreos. Ao voltar para casa triste e absorta, atravessou a rua sem ver o automóvel que a matou. O menino cresceu cuidado pela família adotiva. Formado em medicina, dedicou-se a cuidar de crianças internadas com angustia de separação.


escrito em 04-05-2009

domingo, 3 de maio de 2009

rede de proteção

Rede rompida - danimachlis1



Naquele entardecer o horizonte a chamava. Em silêncio, rompera a rede que, durante anos a fio, sob a desculpa de protegê-la a mantinha no inferno, presa a uma vida que não escolhera. Em instantes, solta no espaço, chegaria mais longe do que pessoa alguma poderia supor.


escrito em 03-05-2009

Instinto animal

gatinho...foto da web


O gato fugia da menina enquanto ela o chamava e tentava alcançá-lo sem desistir. Todos em casa a imaginavam dormindo, mas ela já tinha tomado o leite do bichano, comido a ração do cachorro e prendido o pobre dentro do vaso sanitário. Não, ele não sairia do alto do armário enquanto alguém não prendesse aquele ser feroz que o ameaçava.

escrito em 03-05-2009

festa temática

Comemorariam juntos os aniversários e a festa teria como tema Peter Pan e Sininho. Pouco antes da hora marcada, entre o vai e vem de doces e bebidas, copos e empregados, o porteiro chega com a polícia. O corpo da menina caíra no jardim e o garoto, aborrecido, chorava dizendo não querer mais aquela festa porque a fadinha não tinha voado quando ele a empurrou da varanda.

Escrito em 3-05-2009

Fogo e Frio

autumn leaves - Mad_Alice


Quando menina costumava escapar dos deveres escondendo-se entre as folhagens do jardim. No outono, quando as provas se aproximavam, suas travessuras encontravam melhor abrigo entre as muitas folhagens afogueadas como seus cabelos. Hoje é a neta que escapa aos controles e ela, cabeleira grisalha, não foge mais dos afazeres, mas encontra abrigo na fria paisagem de seu longo inverno.

escrito em 26-04-2009