quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

Um novo olhar

sem título- foto de eco

Últimos dias do ano. Desanimada, espiou o novo calendário. Cores de outono impregnaram sua vista cansada até encontrar, entre os dias marcados, profunda escuridão e nada mais. Presságio - ali terminaria sua jornada. Deixou cair a folha de papel e saiu ao jardim. Vagou ouvindo gorjeios, pés nas águas do rio. Ao acordar no novo ano, voltou a procurar o tal dia. Caído a seus pés, um pequeno quadrado escuro. Percorreu meses coloridos até encontrar o espaço recortado, denunciando o dia suprimido. Respirou fundo e agradeceu à vida.


escrito em 31-12-2009

quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

atrás da casa

Quinta das lágrimas, Portugal


Atrás da casa havia o mundo. E o mundo cabia todo nas mãos dela. Quando, entre as ramas do quintal, suas mãos tocavam minhas pernas e subiam penetrando meus segredos, o mundo ficava imenso e eu voava além dos céus e navegava além das caravelas. Eu ia longe sim, ela me levava e o medo não mais existia.

escrito em 29-12-2009
inspirada pela música Dietro casa, de Ludovico Einaudi.

sábado, 26 de dezembro de 2009

Tão bonzinho!

menn - lost vampire


Sempre fora um 'bom menino'. A mãe teve câncer durante sua adolescência, então se apoiou na primeira namorada que, não se sabe porque, suicidou-se. A esposa enlouqueceu nos primeiros anos do casamento. Bonzinho, cuidou da filha que o serviu até ter condições para fugir de casa. A segunda mulher deixou-o viúvo, acabada em depressão profunda. E o bom menino coitadinho, continua, pois nem a morte o quer por perto!


escrito em 26-12-2009

sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

Metas Natalinas



Naquele dia, a idosa recebeu a cadeira de rodas motorizada e foi sozinha às compras!

No shoping, a moça foi ao banheiro. As portas estavam trancadas e o único aberto era o "especial". Encontrou no chão, uma senhora paralítica que repetia: Papai Noel, Papai Noel! Enquanto a socorriam acharam que delirava e não viram o homem vestido de vermelho que, em cadeira veloz ria bem alto! Afinal, agora iria cumprir sua cota, não atrasaria as entregas!


escrito em 22-12-2009

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Descartáveis


N M B olhares.com


Vinha pela rua quando a lente escura dos óculos saltou ao chão. Jogou-o na primeira lixeira. Mais adiante, a tira da sandália rompeu-se. Nada importante, seguiu descalça. Ao virar a curva da esquina, o elástico da saia estourou e a roupa caiu. Continuou de calcinhas. Agarrada por dois homens, atrás do muro, o estupro. Ficou no chão, descartada.

escrito em 22-12-2009

Vida após a morte

asas por angela schnoor

Fazia algum tempo andava trôpega, caía em cada desnível que surgia e os buracos pareciam imensos precipícios. Exausta de lutar e controlar sumiu em um vão maior entre todos e passou um tempo perdida de si mesma. Como se tivesse acordado, de repente percebeu-se leve. Cambalhotava em vez de tropeçar, sentiu-se em outro mundo e muito melhor! Estava borboleta!


escrito em 21-12-2009

sábado, 19 de dezembro de 2009

sonho em claro-escuro



Caminhava em direção a um local sombrio quando a negra, alta e sorridente se aproximou. Tocando seu ombro, disse: - Olá! sou fulana... Virou-se e nem deixou que completasse a frase pois que a reconhecia de longa data. Apenas acrescentou: - Eu te conheço.

Há muito tempo fazia contato com os aspectos escondidos de sua alma; conhecia o que aquela mulher representava e aguardava o sorriso que a mensagem onírica prenunciava.


escrito em 09-12-2009

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Onde anda Maria?

cateblanchett


Pergunto-me. Ainda será bela? Viverá em eterna procura, espalhando odor ao perseguir nova quimera? Por vezes duvido que me tenha acontecido; foi fato ou criação de meu desejo? A que vive, se viva está, não é a mesma que carrego na memória. A que visito em sonhos, na casa e no corpo, seguirá viva enquanto me for lembrança. Pés encobertos, desfocados e tementes pelas ruas fugidias do descompromisso, se acaso nos cruzarmos será uma estranha. Mesmo que algum odor possa, num átimo, me atrair e confundir Maria existe eterna, apenas em mim.


escrito em 14-12-2009

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

O medo de Maria

interferência sobre foto de Cate Blanchet



Maria teme as perdas. Carrega o vazio e busca enchê-lo inutilmente. Por medo, não se entrega e nada a satisfaz por muito tempo. O que procura talvez more em si mesma. Segue a vida acumulando desperdícios e embora sua absoluta ausência, eu vivo pleno de Maria.


escrito em 16-12-2009 -

domingo, 13 de dezembro de 2009

Os saberes de Maria

foto da atriz Cate Blanchet


Maria lia muito, e escrevia! Suas idéias, ricas e originais, brotavam da inconstância de seu viver. Literatura era seu oficio e, quando tecia teses delirantes sobre a sexualidade de algum escritor, podia me fazer rir ou pensar por um bom par de dias. Séria em seus deveres, não gostava de estar exposta ao mundo. Concentrada como um suco natural, guardava a autenticidade que fazia dela um ser adorável quando doce e detestável ao azedar. Mas era na cama e na cozinha que Maria se revelava plena, sem doçura ou azedume. O fogo de sua paixão não permitia temperos.


escrito em 13-12-2009

sábado, 12 de dezembro de 2009

O cheiro de Maria

imagem encontrada na web


Chegar à casa de Maria era reviver. A estrada dura e pedregosa amansava, o dia cinzento clareava ao aproximar a presença luminosa. Sob o tecido leve da blusa, seus seios se ofereciam em deliciosa displicência. Maria transpirava vida e o cheiro do prazer penetrava minha pele antes que seu gozo chegasse à minha boca. Era imã para meu desejo e os minutos sabiam a milênios enquanto as horas se esgueiravam pelas frestas, no tão constante movimento de nossos corpos enlaçados. Um dia a casa me esperou vazia. Ainda volto lá, seguindo na memória, o odor dos gestos de Maria.


escrito em 12-12-2009

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Choro libertador

Aluna chora no enterro de Evandro João da Silva, coordenador de projeto Social do Grupo Cultural Afro Reggae, assassinado no Centro do Rio em um assalto. Foto Marcos Tristão

Criança, tentou falar mas só emitia sons estranhos. Uns pensavam que fosse estrangeira, outros tinham medo: - Devia estar com santo! Médico algum explicava. Estudando música ficou tranquila e os sons cessaram. A música bastava para se comunicar. No dia em que o amigo foi assassinado chorou muito. Enquanto tocava, uma torneira foi aberta em sua alma. Voltou para casa falando como todos.


escrito em 08-12-2009

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Detalhes em Maria

The dancer 2nd Act VIII- Maria Flores


Nem na face, nem no esbelto corpo é possível observar a beleza de Maria. Seus segredos ela revela em gestos e no olhar que cai sobre as mãos, sobre a curva do braço, ao estender o pescoço e no arco que as costas fazem ao girar os quadris. O que ninguém consegue saber é o que Maria esconde sob os pés desnudos, sempre cobertos, protegidos e nunca desvendados. Amores que deixou de viver, lugares onde jamais pisou, passos que evitou dar. Para os pés, seu olhar nunca se volta e não repousa. Ali ela guarda tudo o que não é.

Escrito em 09-12-2009

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

um toque diferente



Apreciava minicontos, mas ao ler livros no gênero, ficava insatisfeito porque acabavam logo. Quando escreveu um livro, desejou que as pessoas saboreassem seus contos, se detivessem mais nas histórias que criara, tivessem uma relação mais sensorial com sua obra. Publicou em Braille.


escrito em 07-12-2009

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Dimensões

blog.uncovering.org_foto de Luz Maria Vales

Desanimava acordar. Um breve rol das obrigações do dia era suficiente para desejar voltar ao sono. Numa dessas manhãs, a mente parecia desativada, apalpou o corpo e sentiu-o diferente. Em lugar do lençol, um diáfano véu a cobria e não reconhecia o lugar. Com medo, voltou a deitar-se tentando entender aquele sonho. Mergulhada em estranhamento, percebeu-se no corpo de uma mulher gravemente doente, já quase sem vida. Em angústia, desejou suas tarefas de rotina. Quando o despertador a trouxe de volta, compreendeu que ressuscitava.


escrito em 02-12-2009

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Motivações

Veasey_blog.uncovering.org

Conseguiram radiografar um veículo que transportava soldados para a guerra e relacionaram algumas tonalidades do filme aos estados de espírito da tropa. Muitos tinham medo, outros incontida ira. Uns a mais pura excitação e alguns poucos, tons de vingança. Em apenas dois deles as cores divergiam: o motorista, cuja aura era a do dever e um outro que brilhava com o tom da felicidade. Este pedira exclusão da missão e descia do ônibus.


escrito em 02-12-2009

sábado, 5 de dezembro de 2009

Noiva fujona


Ainda bem que a avó mandou que levasse dinheiro escondido no buquê. Esperando entrar na Igreja, ouviu a futura sogra fazendo seu noivo jurar que logo a tornaria mãe, séria e responsável. O garoto que brincava na calçada nem teve tempo para negar. Trocado pelo dinheiro, o par de patins devolveu- lhe a ansiada liberdade.


escrito em 02-12-2009

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Vida eterna

Pani życia i śmierci... autor - jorro


Ela tinha sido casta e boa. Morrera jovem, servindo a Deus. No cemitério, através da imagem que fizeram dela, seu espírito percebia a nova e melancólica vida e se perguntava por que os túmulos à volta eram saudados com visitas e flores, enquanto o dela só recebia chuva, os dejetos das aves e a marca desfiguradora do tempo.

Escrito em 02-12- 2009

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Talento precoce

imagem encontrada na web


Desde pequena conseguia tudo através do choro dramático. Implicava com irmão e amigas e batia neles até que alguém revidava. Então abria o berreiro e o outro era punido injustamente enquanto ela passava por vítima. Adulta, onde trabalha, cada homem que deseja sem sucesso, denuncia por assédio sexual.


escrito em 01-12-2009

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

O reflexo

imagem encontrada no google



Doente há tempos, a irmã piorava pelo abandono em que a deixavam. Criticava, cobrava e humilhava a pobre moça que só se desculpava. Naquela tarde falou-lhe com tal rispidez, cobrou e ameaçou tanto que o desespero levou a irmã a se atirar no espaço. Ano seguinte sentiu um empurrão contra a grade da varanda. Assustou-se mais ao ouvir gargalhadas e reprimendas ao seu comportamento. Realmente não estava sendo correta, mas quem saberia? Ao tapar os ouvidos uma rasteira a desequilibrou. Caiu no vazio ainda a tempo de perceber o reflexo de sua alma tão mesquinha.


escrito em 01-12-2009