quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Céus e deuses

from Camille Flammarion’s 1888 book L’Atmosphère


Quando soube que chamavam seu palato de Céu da boca, Luca ficou intrigado. Seria aquele céu que conhecia, o dentro da boca de Deus?

No céu da boca de Luca, girando num micro planeta, um minúsculo menino matutava: quem comandava, acima da abobada que percebia, a galáxia onde ele habitava?


escrito em 25-11-2009

A mesma tecla


No jantar, nas mesas em volta só ouvia conversas masculinas sobre trabalho, dinheiro, lucros e crédito. As mulheres pareciam estar num velório, entediadas e ausentes. Ao passar para o toalete, pode ouvir dois rapazes falando sobre pratos, iguarias e música. Parou encantada. Aqueles dois acabavam de resgatar seu conceito sobre a mente masculina! Seu êxtase durou pouco ao perceber que ambos eram empregados do lugar: discutiam assuntos do trabalho, preocupados com dinheiro e lucros!


Escrito em 20-11-2009

terça-feira, 24 de novembro de 2009

As peças do jogo

puzzle - imagem da Web


Gostava quando Mnemósine a convidava para uma tarde de chá e jogos. Sobre a larga mesa, peças desordenadas de imenso quebra cabeças desafiavam a formação de imagens. Identificava o jogo como parte de sua vida, mas percebia que a deusa introduzia novas peças inventadas naquela hora e divertida, apanhava algumas de outras caixas. Era assim que a vida se renovava e suas histórias enriqueciam.


escrito em 23-11-2009

domingo, 22 de novembro de 2009

Depressa enquanto vivo



Nem adolescentes ainda e sentavam-se excitadas, à mesa de restaurantes. Unhas vermelho sangue, modelo colante em corpos de criança. Sobre a mesa, seus trocados somados tentavam alcançar algo do extenso cardápio. Nos ouvidos, os mais novos modelos em telefonia celular. Um ano depois, maquiagem pesada, diversas drogas, algum botox e várias modalidades sexuais. Quinze anos depois motivação alguma, tédio. Jamais pensaram viver tanto. A primeira comprou uma boneca. A outra suicidou-se.

escrito em 21-11-2009

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

O trem

jesien - autor nołnejm


Identificava-se com livros. Amava ler e escrever tanto quanto gostava de conhecer lugares. Sempre que viajava dividia seu tempo entre as histórias e a paisagem. Doente e cansado tomou o trem de sempre, mas desta vez seu caminho não teria rumo nem parada. Iria até o fim, para o sempre. A vida, ele foi largando sobre os trilhos e o outono o amarelou e cobriu até sumir-se na fumaça. Sem apito, sem bagagem, sem volta.

escrito em 17-11-2009

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Atavismo

Hansel & Gretel


O menino tinha fixação em pegadas, caminhos marcados por passos, marcas de solas sobre qualquer superfície. Não conseguia definir a desorientação interior, sentia-se perdido longe de casa. Descendia de João e Maria.


escrito em 13 -10-2009

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Entre as suicidas

imagem de campanha de prevenção a aids


Estava lá dentro e, assim que se acostumou à penumbra, descobriu muitas, muitas coisas femininas emboladas e, nem sempre a tônica era mulheril. De alguma forma começaram, como de hábito, uma conversa interminável, cruzada e barulhenta sobre as razões de estarem ali, expostas a ruína. Algumas resolveram, já que outras se deprimiam complacentes, revolucionar e reverter suas escolhas. Por quase unanimidade, decidiram que homicídio era muito, mas muito mais criativo e apaixonante. E renasceram pérfidas, mas muito animadas e divertidas!


escrito em 31-10-2009
a partir do e-mail : Escritoras Suicidas | Edição 37 | Com você dentro.

aquele beijo que te dei



Aquele beijo, você o guardou na gaveta, lembra? Acho que nem sabe mais dele, talvez tenha se estragado por que misturado a depósitos bancários e moedas fora de uso. Agora que envelheci, talvez volte a ter alguma validade. Quem sabe depois de minha morte você consiga um bom lance em leilão de objetos não usados!


escrito em 14-10-2009
originalmente para o site 'escritoras suicidas'

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Ao mesmo tempo

foto4 do site Bairro das Laranjeiras

Morou na mesma casa desde que nasceu até não mais poder conservá-la. Conhecia todos os seus cantos, cheios de memórias acumuladas ao longo do ser só. Quando passou pela rua e a viu semi demolida, apenas um depósito de plantas e entulhos, quis entrar. Pelos cômodos a céu aberto, encontrou os conhecidos fantasmas e se espantou. Assim como ele, todos estavam muito envelhecidos!


escrito em 16-11-2009

Intervalo

sem título - autor - Izi34


Bastava pegar no sono e lá estava ela naquele mesmo lugar onde só se ouvia o grito das gaivotas e o leve respirar das águas. Passava parte da noite - ou seria toda? - balançando sempre igual, no mesmo ritmo, enquanto cantava muito baixinho para que nada fosse diferente, para não perturbar coisa alguma nem mesmo sabia o que. Embora ficasse cansada sabia que estava viva e que, ao acordar, tudo acabava e só restava o lodo fundo e sem cor onde seu corpo se afogara.


escrito em 12-11-2009

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Desejo extremo



Seu conceito de beleza incluía, principalmente, pés magros, estreitos e ossudos. Quando engordava um pouco ficava desolada, não importando se o resto da aparência agradava à maioria. Naquele momento sentia-se gloriosa. Que prazer estar em silêncio, deitada naquele ângulo, enxergando perfeitamente os artelhos brancos, rígidos, belíssimos, expostos acima da mortalha. Ainda bem que respeitaram seu desejo de estar descalça.


escrito em 12-10-2009

publicado originalmente na pagina "escritoras suicidas"

domingo, 8 de novembro de 2009

Psiquótica

Fillmorepeque


Fazia um tempo que seu drama pessoal andava sem diretor. O ego, insatisfeito e cansado, havia tirado férias e sua psique estava um caos. Personagens discutiam entre si e as falas desconexas atraíam uma platéia estranha que, vestida de branco, teimava em atirar-lhe comprimidos e seringas cheias. Sem dormir, tentava escapar das agressões e vigiava aquele que, em um canto escuro, tentava dominar a cena. Sinistro, trazia uma corda nas mãos e sob sua direção, certamente o espetáculo terminaria.

escrito em 08-11-2009

Salada mítica

ErosPsiqueDescobertaDenisHermitage


Quando, sorrateira, ela foi espiar quem era aquele com quem dormira, deixou cair sobre os olhos do rapaz a cera quente da vela que segurava. Cego e filho de importante juíza, a pena imposta à curiosa foi tornar-se escrava de ambos até o fim de seus dias. O moço, protegido pela mãe poderosa, passou a ser o intérprete exclusivo da justiça. Adquiriu tanta popularidade que até mudou nome e sexo, mas rancoroso, por mais cego que estivesse, nunca conseguiu ser imparcial com as mulheres.


escrito em 30-10-2009

sábado, 7 de novembro de 2009

Ciclo elementar

imagem da web



Os signos de fogo impregnavam nossa vida. Nossos parceiros, aéreos, insuflaram com sua racionalidade e distanciamento a paixão que nos brotou em meio a tanta festa. Com o beijo que te roubei, entre azulejos, copos e panelas, incendiamos o tempo e explodimos de prazer, mas você se foi na primeira oferta de matéria enquanto as lágrimas me fizeram apagada e fria.


escrito em 14-10-2009

publicado originalmente no site escritoras suicidas

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Contrabando

GAUDI DETALHE DE MOSAICOS



Viajava com o mínimo de bagagem aparente. Entretanto, se algum dia passasse pela balança seria preso e teria que pagar um excesso inominável. Ninguém jamais pensou em revistar seu coração, pensamento e desejos, quase tão cheios de seres, afetos e imagens quanto sua memória. Esta só esvaziava quando ele depositava em traços, cores e palavras as riquezas que os países e seus fiscais ainda não sabiam avaliar.


escrito em 30-10-2009

domingo, 1 de novembro de 2009

Dupla natureza

Fistro_04a


Foi um felino quieto, dócil e acomodado. Entretanto quando se arriscava nas alturas ou se equilibrava nas bordas finas das janelas, narinas dilatadas sorvendo ar, era possível perceber sua outra natureza, leve e instável. Parecia querer saltar no espaço. Morto, suas cinzas foram adubar duas grandes árvores gêmeas. Assim como ele, amigas do dia e da noite. Passado algum tempo, um belo gorjeio denunciou, na parte mais alta das copas, o pássaro negro que arriscava seu primeiro vôo.


escrito em 11-10-2009

pelo primeiro mes sem o doce Feijão.

O Investigador



Com dois anos, seu brinquedo preferido era montar quebra cabeças. Percebia rapidamente encaixes, cores e espaços vazios. A família se surpreendia com sua capacidade de ver detalhes. Com o mesmo olhar escrutinava o comportamento dos pais e desvendava suas almas. À medida que crescia, a perspicácia do que dizia sobre as pessoas da casa desconcertava a todos. Embora as chaves da casa vivessem desaparecidas, pessoa alguma descobriu que ele observava a intimidade alheia pelos vãos das portas e olhos das fechaduras. De resto, só fazia juntar as peças.


escrito em 30-10-2009
para o Luca, um dia.