segunda-feira, 3 de agosto de 2020

SARAMAGO ESCREVEU ESTE CONTO EM 2002




E SOLICITOU AOS INTERNAUTAS QUE O COMPLEMENTASSEM. 

SEGUE O CONTO E A SEQUENCIA QUE ESCREVI 

Um Azul para Marte


À noite fiz uma viagem a Marte. Passei lá dez anos ( se a noite nos pólos dura seis meses, não sei por que não caberão dez anos em uma  noite marciana) e fiz muitas anotações sobre a vida que levam por lá. Me comprometi a não divulgar os segredos dos marcianos, mas vou faltar com minha palavra. Sou humano e desejo contribuir, na medida de minhas poucas forças, para o progresso da humanidade a que tenho o orgulho de pertencer . Este ponto é muito, muito importante. E, espero, se algum dia os marcianos me vierem pedir conta de meus atos, quero dizer, do prejuízo causado que, os não sei quantos bilhões de homens e mulheres que existem na Terra se coloquem, todos, em minha defesa.
Em Marte, por exemplo, cada marciano é responsável por todos os marcianos. Não estou certo de ter entendido bem o que isto quer dizer, mas enquanto estive lá ( e foram dez anos, repito), nunca vi um marciano que desse de ombros. (tenho que deixar claro que os marcianos não têm ombros, mas estou certo que o leitor me entende). Outra coisa que me agradou em Marte é que não há guerras. Nunca as houve. Não sei como se arranjam e eles também não souberam me explicar. Talvez porque eu não fui capaz de tornar claro o que é uma guerra, segundo os padrões da Terra. Até quando lhes mostrei dois animais selvagens lutando (eles também existem em Marte), com grandes rugidos e dentadas continuaram sem entender. A todas as minhas tentativas de explicação por analogia, respondiam que os animais são animais e os marcianos são marcianos. Desisti. Foi a única vez em que quase duvidei da inteligência daquele povo.
Contudo, o que mais me desorientou em Marte foi não saber o que era campo e o que era cidade. Para um terrestre isso é uma experiência muito desagradável, lhes asseguro. Acabamos por nos habituar, mas demora. Por fim, já não me causava  estranheza alguma ver um grande hospital ou um grande museu ou uma grande universidade ( os marcianos têm tudo isto, como nós) em lugares inesperados, para mim. À princípio, quando eu pedia explicações, a resposta era sempre a mesma: o hospital, a universidade, o museu estavam ali porque eram necessários. Tantas vezes me deram esta resposta que pensei ser melhor aceitar com naturalidade, por exemplo, a existência de uma escola com dez professores marcianos, num local onde havia apenas uma criança, também marciana, claro. A princípio, não pude deixar de dizer, que me parecia um desperdício que houvesse dez professores para um aluno, mas nem assim os convenci. Me responderam que cada Professor ensinava uma matéria diferente, e que a coisa era lógica.
Em marte, ficaram impressionados que na terra existam sete cores básicas das quais podem se produzir milhões de tons. Lá só existem dois: branco e preto (com todas as gradações intermediárias), e eles sempre suspeitaram que haveria mais. Me afirmaram que era a única coisa que lhes faltava para que fossem completamente felizes. E ainda que me fizessem jurar que não falaria do que vi por lá, estou certo de que trocariam todos os segredos de Marte  pela maneira de obter um azul.
Quando saí de Marte, ninguém veio me acompanhar à porta. Creio que, no fundo, não nos dão importância. Olham de longe nosso planeta, mas estão muito ocupados com seus próprios assuntos. Me disseram que não pensarão em viagens espaciais enquanto não conhecerem todas as cores. É estranho, não? Por mim, agora, tenho minhas dúvidas. Poderia levar-lhes um pedaço de azul ( uma tira de céu ou um pedaço de mar), mas, e depois? É certo que, se vierem aqui, tenho a impressão de que isto não vai lhes agradar.



Então...


Resolvi voltar a Marte, levando na bagagem algumas lágrimas, duas nuvens e um espelho imenso. Este último me causou bastante transtorno não só por seu tamanho mas por refletir minha ansiedade quanto ao sucesso de meu sonhado projeto.

Sim, eu havia sonhado com água em Marte. A água suavizaria a atmosfera solar, dura e escaldante, sem sub tons entre tanta luz e as sombras projetadas: pretos e brancos, plena luz e sua ausência.

As nuvens se comportaram bem durante a viagem e não entraram em atrito senão no momento exato quando meus pés, alcançando o árido solo marciano, sentiram necessidade de uma boa carga d'água.
As lágrimas guardei para o momento certo, bem nos cantos dos olhos, em posição de alerta.

Como não tinha auxílio, demorei mais dez anos a colocar o espelho na posição correta para que devolvesse ao Sol sua inclemência. E então, quando começou a trovejar, os marcianos correram para saber o que havia e já se depararam com seu reflexo no espelho d' água que se fazia cor !

O planeta duro e seco amolecia em umidade rara e, no masculino solo, brotava o sentimento. Os marcianos, afastados de sua racionalidade, riram pela primeira vez e, sem perguntas, entenderam as lágrimas que saltavam de seu refúgio sobre meu rosto emocionado.

Em breve seríamos visitados.


complemento de Angela Schnoor. Em 05/04/2002