
Leu numa
Microcontos ou micronarrativas me parecem ser um meio de acesso à imaginação ampla. Eles servem como isca e possibilitam a quem os lê desenvolver toda uma história plena de detalhes, totalmente original e única a cada novo leitor.
cover - Barbara Cole
Enquanto caminhava sentia um incômodo às costas, na altura das omoplatas. Todo dia, por mais que tentasse relaxar, aquilo persistia e crescia. Desconfiava que eram asas a querer brotar e não as desejava, pois sabia dos riscos a que estaria sujeita. Ao subir como previa conseguiu escapar dos caçadores, mas sucumbiu às garras do gavião.
Vinha sob a chuva, andando pela beira da calçada quando um carro, veloz, lançou sobre ela mais água do que podia suportar. Até chegar em casa e tirar a roupa não havia percebido a pele enrugada e escamosa a unir coxas e pernas. Entrou no banho e o fenômeno aumentou com tal velocidade que não mais conseguiu manter-se em pé. Sentada, tampou o ralo da banheira e mergulhou. Ali ficou até o outro dia, resolvendo como encomendaria um grande aquário. De alguma forma estava decepcionada. Desejava viver no mar. Após anos e anos de análise, nunca havia se percebido de água doce.
Conhecia a fábula de família, mas era uma ovelha loira, com memória fraca, desgrenhada e tonta. Quando o lobo chegou à beira do riacho para beber água, ela fez diferente: subiu para perto da nascente, para que ele não reclamasse. Quando o Lobo viu aquilo, já ia avançar na abusada, mas ficou com medo, meteu o rabo entre as pernas e sumiu. Nada sabia sobre contágios. E se aquele mal pegasse?
Escrito em 13-09-2010
Numa festa Global, Violenta, herdeira mimada e Alfresco, ator e dançarino se conhecem. Acostumado a conquistas, ele quer seduzi-la, mas se apaixona. Vivem o caso às escondidas e o rapaz gasta o que ganha bancando as vontades fúteis da garota. Ao descobrir, os pais de Violenta pedem ao jovem que a abandone, pois está prejudicando sua reputação. Por amor, ele marca uma conversa em festa gay para romper a relação, simulando namorar um rapaz. Em desespero, após beber muito, Violenta arma um barraco ao ouvi-lo afirmar que não a quer mais. Triste e empobrecido, Alfresco descobre-se com câncer avançado. Muito frágil, recebe visita do pai da moça dizendo-se arrependido, pois a filha desde então, só dorme e fuma maconha. O velho usa de influência para transferi-lo ao melhor hospital, mas é tarde. Ao chegar o dia de visita, o casal se abraça e se reconcilia, mas o jovem expira nos braços da amada.
escrito em 24-07-2010
Agora que deixaste a casa percebo, com angustia, teu valor. Não como, vivo entre lençóis amarfanhados e nem ao banho compareço. O caos impera. Roupas fedem espalhadas pelo assoalho e até o cãozinho passa as noites ganindo deitado sob a cama. Volta, eu te imploro. Prometo aumentar teu salário e te dar folga nos finais de semana.
Ao ver um vídeo sobre as pinturas da Capela Sistina, algo estranho despertou sua atenção. Conhecia o lugar, mas custou a crer no que percebeu. Atrás do coral de meninos, alguns padres roçavam os quadris protuberantes nos corpos das crianças cantantes.
imagem do filme - o fim da linha
De pé no carro do metrô, a paisagem vista pela janelas tornou-se desconhecida, aos poucos sentiu que havia perdido seu destino. As estações passaram e não sabia mais aonde ia. À medida que o vagão esvaziava e enchia novamente, não reconhecia mais os sons nem a si mesmo. Perdido no espaço e no tempo, fosse aonde fosse, seria um pêndulo seguro apenas pela haste prateada, cordão umbilical do vagão, sem porto ou parto.
escrito em 02-09-2010
Já idosos, ordenados há muitos anos, os irmãos sacerdotes passeavam nos jardins e se divertiam lembrando como conseguiam favores dos meninos mais novos, ameaçando afogá-los no lago caso revelassem o que faziam nos dormitórios do colégio interno.
escrito em 02-09-2010
Adormecia a neta enquanto acariciava sua cabecinha. Para cada fio de cabelo contava histórias pequenas, pois o bebe pegava no sono e os fios, curtinhos, não permitiam contos longos. Com o passar dos anos, o cabelo crescia e as histórias tomavam formas novas e mirabolantes.
Quando a menina trançou as longas madeixas, logo as histórias da princesa, do jovem e da fada se mesclaram formando um belo conto. À noite ela dormiu e sonhou como jamais. Quando vieram novas tranças, ao romance da princesa misturaram-se as intrigas de uma bruxa, mas fios próximos, com história de pássaros, permitiram que a princesa fosse informada a tempo e o final foi feliz.
Algumas vezes os cabelos eram aparados nas pontas. Nestas ocasiões, os finais das histórias se perdiam e a avó aproveitava para criar novas soluções para os personagens, alegrando e enriquecendo os sonhos da menina.
Na medida em que se tornava mulher, as histórias rareavam e, muitas vezes o adormecer era o momento de conversar com a avó sobre fatos da vida. Então aconteciam histórias plenas de conselhos, permeados pela sabedoria da idosa senhora.
No dia em que a moça, de surpresa, resolveu cortar os belos cabelos, foi o tempo de se despedir de sua avozinha. Então uniu as mechas cortadas em larga trança e, como um livro, depositou-a em uma caixa junto com os textos de todas as histórias que lembrava.
Um dia, teria uma filha e uma neta e assim, os contos trançados continuariam.
Para Sofia, dos belos cabelos de ouro, uma história inventada na hora de dormir.
em 29-08-2010