
A Liberdade já tinha sido perdida quando trocada por poder e ganância.
O afundamento de sua estátua no mar, apenas tornou o fato visível.
Microcontos ou micronarrativas me parecem ser um meio de acesso à imaginação ampla. Eles servem como isca e possibilitam a quem os lê desenvolver toda uma história plena de detalhes, totalmente original e única a cada novo leitor.
Durante a infância dormiu na mesma cama que os pais. Abraçado a eles, se sentia seguro e os maus sonhos desapareciam. Ao tornar-se adulto, nunca conseguiu dormir e fazer sexo sem a presença de uma terceira pessoa, mas nem todas as parceiras aceitavam bem sua proposta. Adotou um filho.
Dormia profundamente, quase despida. O assaltante entrou e a viu na cama, pernas abertas, convidativa. Tentado, começou a penetrá-la com sua arma enquanto ela, dormindo, sonhava imenso prazer. Num segundo, o homem lembrou-se de que não podia desviar-se de seu propósito. No exato momento em que ela sonhava um grande orgasmo, com estrondo abafado, a bala penetrou-lhe as entranhas.
Há semanas ligado a aparelhos, já tinha estado na porta do paraíso e só voltou porque a família, sofrendo, o prendia. Não conseguia falar, mas ouvia tudo e se afligia ao vê-los assim. À noite, quando estivesse só, iria soltar-se daquelas coisas e todos estariam aliviados. Porque cargas d' água as pessoas se prendiam a tubos e cordões?
escrito em 21-05-2010
Há tempos se surpreendia com nomes americanos infestando lojas e eventos da cidade. Naquela manhã percebeu uma placa de rua escrita apenas em inglês. Não, não se tratava de avanço em prol do turismo, pois a palavra Lagoon referindo-se à Lagoa da cidade, não aparecia também em português. Decidiu, então, andar com o passaporte na bolsa.
Sozinha na praia a menina pensava: Por que? As lágrimas escorriam de seus olhos claros, salgadas como as águas do imenso azul, e as conchas sobre a fria areia, duras e ásperas como a tristeza e a aflição no peito, sempre que a mãe maltratava seu corpo e arranhava sua alma. Por que?
escrito em 12-05-2010
Protetora
Estava sempre salvando formigas e borboletas no jardim, partilhava balas com o cachorro e espantava pássaros do caminho do gato. O peixe sobre a mesa da cozinha ainda se mexia e parecia aflito. Nas pontas dos pés o alcançou e o levou, rápido, para um banho na banheira das bonecas.
Irmãs
Lendo, estava feliz e acompanhada. Minha irmã, solitária, chutava meu livro e cantava alto interrompendo a leitura. Me provocava até que eu esbravejasse e então, sonsa e sorrateira, chorava até que a mãe me pusesse de castigo. No escuro, isolada, eu lia histórias que sonhava.
No ritmo
Ouvia muitos Não todo dia. A cada um, engolia um som não emitido. Quando ganhou o tambor, as pessoas se encantaram com sua aptidão para tocar o brinquedo. Devolvia a raiva acumulada no mesmo ritmo com que lhe impuseram limites. Apenas tocava de memória a melodia que haviam composto para ele.
Desperdício
Diante da folha em branco onde deveria, por castigo, copiar inúmeras vezes a imbecil frase disciplinadora, o menino sofria. Para onde iriam as idéias fantásticas que passavam por sua mente, proibidas que estavam de serem escritas no papel?
escrito em 10-05-2010
Mamãe mandou
Antes de sairmos, mamãe me vestia com esmero. Gostava de exibir seus cuidados maternos onde me levava. Por horas a fio, enquanto tomava banho e se arrumava, exigia que eu me mantivesse impecável até sairmos. Sentada no sofá, sem fazer qualquer movimento, minha mente imaginava a explosão de gás no banheiro, seu tombo na poça d’ água ao pisar na rua e inúmeras outras diversões para minha mente inquieta de menina obediente.
escrito em 10-05-2010
Viveu na mansão, aferrada a seus bens e hábitos, até morrer com quase cem anos. Os herdeiros carregam o peso deste apego. Após inúmeros percalços com canos, aquecimento, cupins e vazamentos, puseram a casa à venda. Há anos, pretendentes fazem visitas e desaparecem sem fazer ofertas. Nada dizem, apenas somem. Não contam que, no grande espelho do vestíbulo, a velha aparece e despeja maldições terríveis sobre quem vier a ocupar seu lar sagrado!
Mnemósine andava fraca e doente. Sem ânimo para cuidar de seu acervo, por desleixo o deixou mofar e quase se desfazer. Temendo ser entregue às moiras, pediu ajuda. Recebeu pronto atendimento de Ariadne e Penélope. Enquanto a primeira, provida por Aracne, trouxe fios novos; a segunda, experiente tecelã, ajudou a dar nós nas lembranças destroçadas, recuperando antigas histórias com belos e novos detalhes.
escrito em 24-04-2010 , para Stefano Valente.