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Microcontos ou micronarrativas me parecem ser um meio de acesso à imaginação ampla. Eles servem como isca e possibilitam a quem os lê desenvolver toda uma história plena de detalhes, totalmente original e única a cada novo leitor.
Mandou instalar no mausoléu da família uma antena possante que transportasse sinais de telefonia de qualquer tipo. Nas instruções que deixou para seu sepultamento havia a exigência de ter um aparelho celular nas mãos. Sabia que era cataléptico, mas sua maior diversão era pregar peças nos amigos e estes, na aflição, se esqueceram de carregar o aparelho.
Sentindo-se com todos os direitos, uma raça de seres imensos, tão inconsequente e insensível quanto os humanos, invadiu o planeta. Colocando as crianças em sacos, pisoteavam os adultos enquanto levavam os pequenos corpos aos dentes e os devoravam crus, sem dó ou piedade! Apavorados, os homens gemiam perguntando o que teriam feito para merecer tal destino.
Ao ser atingida pelo raio, sentiu-se fora do ar. Aos poucos, recobrou as funções naturais e apenas a visão não parecia normal. Ao abrir os olhos percebeu que via a paisagem em negativo e as pessoas que a cercavam, transparentes. Além do interior dos corpos, captava claramente os pensamentos e sentimentos delas. Ficou tão chocada com a curiosidade mórbida, a falta de interesse humano e os sentimentos mesquinhos, que preferiu estar morta.
Passou a sonhar que copulava com um belo homem de olhos e cabelos prateados. Nessa época, descobriu o salão Hipnos, que oferecia relaxamento especial para todas as tensões. Marcou hora. Ao chegar, em copo alto, tons suaves de verde e azul efervescente, foi-lhe oferecida a bebida da casa que parecia irrecusável. Recostou-se para lavar os cabelos enquanto sorvia o adorável líquido pelo canudo volteado. Ao fechar os olhos, reconheceu o toque das mãos em sua cabeça: era ele, o homem de prata. Não havia mais razão para lutar, entregou-se serenamente a Thánatos.
Ofélia- extrato da pintura de John Everett Millais
Hipopótamo andava triste com sua cor, tamanho e vagareza. Do pântano, observava as libélulas leves, rápidas, asas transparentes coloridas pela luz! No ano novo resolveu vestir roupa branca, pois às noites até hipopótamos ganham direito de se sonhar libélulas! Mas, quando tentou acasalar com leveza semelhante, desistiu. Sentiu muita falta de sua velha e consistente companheira.
Musas dançando com Apolo - Baldassare Peruzzi
Mnemósine, não sabia mais o que fazer para manter-se saudável e íntegra. Pediu, em vão, ajuda às nove musas, suas filhas. Não havia mais quem preservasse livros, poesia, história, música e danças; tragédias e comédias misturavam-se reduzidas a reles pegadinhas, a natureza e os campos destruídos e as ciências um monte de idéias descartáveis servindo aos interesses mais vis. Zeus, o pai das jovens, havia sido destronado, e no reino de Plutão, que imperava em seu lugar, todos bebiam as águas do Lete.
escrito em 03-01-2010
Cérbero não suportava mais as dores nas costas. Sustentar três cabeças atentas a qualquer movimento reduzia a frangalhos sua cervical. Pediu ajuda a Hefestos, que criou e instalou em seu flanco uma quarta cabeça. Equilibradas, não pesavam tanto e ele ainda podia coçar melhor as costas sem depender da boa vontade de Perséfone. Sabia que o fato poderia interferir em conceitos mitológicos e psicológicos do passado, mas afinal a lei de seu amo era a transformação!
Ele se considerava excelente companheiro e amante apaixonado. Quando o casamento entrou em crise, levou a esposa à praia onde gostava de passar férias, mas a relação naufragou. A segunda união começou a desandar e então decidiu ter uma segunda lua de mel. Escolheu o mesmo local, sua praia preferida. A convivência piorou até terminar. A primeira esposa detestava praias e adorava montanha. A segunda, apreciava cidades, museus e atividades culturais.
escrito em 01-01-2010