terça-feira, 26 de agosto de 2008

Memórias



Vivia com o pai na casa onde havia nascido. Memórias de toda vida vagavam pelos cantos, atrás dos quadros, morando na cristaleira, dentro do espelho. Noite qualquer, começou a ver os que já haviam habitado a casa.As vozes cruzavam as mesmas acusações e cobranças que o atormentaram toda vida.


Mãe, empregada, tia, primo, colegas, o cão que late e mostra os dentes aparecem e desaparecem como se vivos fossem.

Não dorme.‘Veja só menino! Quebrou a jarra! Não presta atenção a coisa alguma! Só faz besteira... Há, há! Veja só o pinto dele! Um nadinha de nada! Olha a vara! Sai daqui, tira os pés sujos do tapete, vou contar ao pai quando chegar! É um errado! Não faz nada direito! Fica sem jantar, vai pro quarto! Burro, vai se dar mal na vida, não serve pra nada! Que traste! some daqui! Boboca! Sua menina me beijou, sabia? Não é de nada mesmo! Nada, nada, nada!


Esconde-se sob os lençóis evitando ver, mas as vozes continuam, berram, não dão trégua!O pai dorme ao lado. De nada adianta buscar sua ajuda, sempre mais morto que os fantasmas.Noite qualquer, ouve o chamado do pai. Atravessa quem lhe impede os passos. Chega à cama do velho que arfa suplicando por ar.Seus ouvidos não suportam mais!


A angústia do velho o desespera.Travesseiro sobre a cara, impede o único grito do pai.Na casa impera o silêncio perdido há tempos! Volta ao quarto sem encontrar ninguém. Quantos anos sem uma noite assim, sono profundo, paz!


Sózinho em casa, começa a encontrar o velho vagando. As vozes desapareceram concentradas no grito do pai, pelos cantos, atrás dos quadros, vindo da cristaleira, de dentro do espelho.Vazio. O grito, impotência. Num dia qualquer, no silêncio do quarto, está morto, sufocado pelo travesseiro.



escrito em 9 de junho de 2007
Postado em
IDEÁLIA a 6/16/2007