Aos poucos todos foram deixando o hospício. Entre médicos que se foram, pacientes mortos ou liberados, restaram apenas a miséria e o abandono. As paredes do lugar exalavam murmúrios e gritos e os desabrigados que se apossaram do prédio abandonado não tiveram paz, possuídos por estranhos tormentos. Entretanto, em noites de vento e chuva, vinda do alto da torre, uma voz doce e triste canta poemas embalando o sono daqueles que a conseguem ouvir.
escrito em 29-04-2009
quinta-feira, 30 de abril de 2009
Quem canta no alto da torre?
quarta-feira, 29 de abril de 2009
desencontos
Seu sapatinho perdido não era de cristal e ela, menos que um rato ou uma abóbora. Depois da sessão de choques, descia as escadarias para seu inferno branco, vazio, oco. Perdia-se de si mesma e o sapato, entre tantas faltas não fazia, mas o borralho era tudo o que queria para aquecer a alma despedaçada e fria.
escrito em 28-04-2009
terça-feira, 28 de abril de 2009
Lembranças do amanhã
Ao entrar na sala do extinto manicômio seu corpo cobriu-se de calafrios e estertores. O amigo, para que não caísse, sentou-o na cadeira que ali estava. Desmaiou e ao voltar a si, o pavor continuava. Lembrou-se que era sobre aquela cadeira, que o amarravam para a sessão de eletrochoque. Só não entendia a lembrança, que não podia ser. Exausto e impressionado foi para casa. Pesadelos nunca mais o deixaram dormir. Depois de algum tempo foi internado para um moderno tratamento de eletroterapia.
escrito em 28-04-2009
segunda-feira, 27 de abril de 2009
Guerra
Culpa
Por mais que se escondesse, mudasse de casa e de cidade, continuava a vê-lo por todo canto. Imensa sombra, em permanente ereção e sempre pronto a matá-lo. Ele sabia. O irmão enlouquecido queria sua vida em troca da prisão em que o trancafiara desde menino quando, sob coação, o fizera escravo de seus mais abjetos desejos.
Escrito em 26-04-2009
sábado, 25 de abril de 2009
Súcubus
Após um dia extenso e cansativo, se deu o prazer de um banho quente e demorado antes do ansiado sono relaxante.
Escrito em 25-04-2009
Jack, o escritor
Sempre desconfiou de algo sombrio no passado do pai. Chegando à adolescência, depois que ficou órfão, começou a ter impulsos estranhos e perturbadores. Passou a escrever contos terríveis cujas vítimas eram mulheres impiedosamente destroçadas nos becos da cidade. Sentia intenso prazer enquanto escrevia e muita paz ao terminar cada história. Embora não compreendesse bem o que ocorria, tinha certeza de que esta era a melhor forma de exorcizar seus perigosos instintos.
Escrito em 25-04-2009
Antidepressivo
sexta-feira, 24 de abril de 2009
Pascoal
Escrito em 21-04-2009
quinta-feira, 23 de abril de 2009
o aprendiz
A casinha de bonecas era seu esconderijo preferido. Lá dentro escondia balas e chocolates e se refugiava na hora dos deveres. Tão quieto ficava que esqueciam de sua existencia. Mas o que mais gostava era apreciar, sem ser visto, as brincadeiras de médico que a babá fazia com seu irmão mais velho. Espiava e aprendia como fazer com a amiguinha da escola que convidara para lanchar em sua casa.
escrito em 23-04-2009
quarta-feira, 22 de abril de 2009
Prepotência
A hora do concerto se aproximava e sua angustia crescia. Era a primeira vez após a separação que, em público, tocaria o corpo do instrumento que sempre associara à sua amada. Sua prepotência destruíra o casamento e agora via a carreira ameaçada. Segurava o arco e lembrava de todas as vezes que atritara o corpo da mulher sem afinar com seu tom.
Escrito em 21-04-2009
terça-feira, 21 de abril de 2009
cisne negro
A sapatilha ficou no chão, largada e suja como sua carreira; para sempre. O ensaio naquele espaço perigoso, sugestão da parceira e amiga de tanto tempo, a levara ao hospital. Estava viva, mas os ossos quebrados deixaram para a outra o papel principal. A alma triste e massacrada não teria conserto.
escrito em 21-04-2009
Ser plural
Morpheus era profundamente deprimido. Tudo à volta lhe parecia sonho, ou pior, constante e profundo pesadelo. Pálido, quase sem sangue, tinha vertigens ao menor movimento da cabeça o que lhe causava náuseas ao acordar. Os olhos coçavam ao ver luz e queria retornar ao sono, embora dormindo também encontrasse o inferno. Constava que tivesse um irmão, Moschus, que só encontrava em pesadelos. Moschus vivia ameaçando-o com sua violenta excitação sexual. Ria alto e incontrolavelmente, até que a dispnéia súbita e intensa o fazia desmaiar. Então Morpheus voltava a se reconhecer.
escrito em 21-04-2009
segunda-feira, 20 de abril de 2009
Mágoa
Não era a primeira vez que corria pra casa prendendo o choro antes que alguém percebesse sua mágoa. Os meninos eram seus colegas, mas nem desconfiavam que ela era sua mãe. Apesar de tudo, ele a amava. Era boa e trabalhava para sustentá-lo. Não merecia tanta zombaria apenas porque era a prostituta do lugar.
escrito em 20-04-2009
domingo, 19 de abril de 2009
Eros
Talvez fosse a Lua, quem sabe o cheiro da mata, mas já se tornara um vício. Ela emitia um som, entre o balido e o gemido e ele vinha, fogoso, e a possuía como nunca algum ser havia feito. Jamais vira seu rosto. Só acordava do transe quando já era noite e dele só conhecia, além do prazer, as pegadas e os pelos.
escrito em 19-04-2009
Desde sempre
Mal a manhã despertara ele já ia a caminho, ansioso, antes que as ruas acordassem e os sons atrapalhassem sua concentração. Havia decorado as palavras, mas estava muito nervoso. Tinha trinta anos e só agora a descobrira. Era ela, com certeza! Quando soube que também tinha sido procurado por todo este tempo, não coube em si de contente. Como seria sua voz, seu cheiro, suas mãos? Em breve estaria entre os braços que desejou, desde sempre. Pela primeira vez poderia dizer: - mamãe!
Escrito em 19-04-2009
Uma questão de tempo
A cada um deles cabia limpar um quarto do relógio.Os ponteiros tinham sido parados e o grande sino estava lá dentro, aflito para expressar seu costumeiro som. Conversando, os homens se descuidaram e passaram do limite estipulado, sem se dar conta de que desregulavam, em alguns minutos, toda a vida do planeta. Apenas os fantasmas do palácio não se abalaram com o atraso, pois era dia. Ao anoitecer, entretanto, acordaram com a sensação de terem dormido demais!
Escrito em 18-04-2009
sexta-feira, 17 de abril de 2009
Apelo inútil
Na casa velha e vazia, toda noite à mesma hora, quem estivesse perto podia ouvir uma voz de criança pedindo socorro, e a de mulher que dizia: - volta pra cama, não é nada, vai dormir. Anos depois, quando a casa foi restaurada e vendida, seus moradores acordaram com os chamados e puderam ver a imagem do pequeno agarrado a seu ursinho, chorando e pedindo ajuda. Foi assim desde que o incêndio consumira a ala dos quartos e só terminou muitos anos depois, quando a mãe da criança foi enterrada.
Escrito em 17-04-2009
quinta-feira, 16 de abril de 2009
A travessia da floresta
Seus pais haviam morrido em um acidente e a garotinha, internada em colégio religioso, se sentia triste e muito só. Da família, restara apenas uma avó idosa que, ao visitá-la uma vez por ano, a levava ao cemitério. Neste dia, ela colhia flores no bosque próximo e, sentada num banco, rezava para o Lobo aparecer. Lembrando a história da menina que atravessou a floresta, desejava que desta vez, ele engolisse as duas. Estariam então, de novo, todos juntos para sempre.
Escrito em 16-04-2009
O pássaro
Órfã desde pequena, era calada e muito independente. Uma criança comum, a não ser pelo hábito de, todas as tardes, vestir a máscara de pássaro que ganhara da mãe e passar horas junto à janela do quarto. O pai a inquiria e a resposta era sempre a mesma: um pássaro vinha visitá-la através dos raios de sol e prometia buscá-la, um dia, para um longo vôo. Como se cuidava sozinha, ninguém havia percebido as mutações em seu corpinho. No dia em que completou quatro anos, encontraram a máscara no gramado do jardim e a menina nunca mais foi vista.
A Colcha de estrelas
Encarregadas da noite, elas se atrasaram com o bordado. Conversando distraídas, quando perceberam a tarde já ia longe. Em breve o Sol viajaria e não havia estrelas suficientes para iluminar os campos. Decidiram deixar o céu sem coberta e, inconseqüentes, inventaram o medo. Os homens passariam pela noite escura da alma, não fosse a Lua, caridosa, surgir brilhante e plena a guiar os seus caminhos.
Escrito em 15-04-2009
quarta-feira, 15 de abril de 2009
Resistência
Os cabelos brancos caiam escondendo-lhe o rosto e os passos transidos simulavam a idade que lhe garantiria alguma segurança. Não podia correr e devia cuidar com desvelo do conteúdo de sua bolsa, mas teria que chegar em tempo à avenida, antes que o cortejo passasse. Eram seus últimos passos pelas ruas de sua infância. Em breve seu corpo explodiria levando consigo o visitante oficial e o déspota que o recebia. Afinal, sua vida dura e sofrida teria significado.
Escrito em 14-04-2009
de volta à casa
escrito em 14-04-2009
surpresa
Aceitara fazer um teste para cinema. No dia marcado, já à espera, assustou-se quando o fotógrafo entrou no estúdio, pois não tinha aparência humana. Translúcido e azulado, assim também pareciam o iluminador e a produtora que veio arranjar os detalhes. Sua expressão, entre a surpresa e o medo, ficou perfeita para o tema do filme policial a que se candidatara. Só não tinha consciência, ainda, de que tudo se passava em outra dimensão. Estava morta há algumas horas.
sábado, 11 de abril de 2009
Anúncio In Classificável
Viúva pela a 10ª vez, financeiramente independente, exímia cozinheira e proprietária de açougue, procura homem sério e com boa saúde para associação estável.
Escreva para caixa postal 4692 ou deixe recado pelo telefone 22056669. Envio foto.
Amor em pedaços
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Estava desempregado,adorava aquele docinho e não distinguia detalhes. Feito contato e contrato, tornou-se o pedaço numero 11!
Escrito em 08-04-2009
sexta-feira, 10 de abril de 2009
Babel
Discutiam e, ferozmente antepunham argumentos; o medo de um, refletindo o do outro. Nenhum queria entregar-se à razão alheia. Um observador passante decodificou os sinais: discordavam tendo a mesma opinião e por caminhos diversos, diziam a mesma coisa.
Escrito em 06-04-2009
terça-feira, 7 de abril de 2009
Resgate
Para meus netos.
Desejo de existir
A menina era adolescente, desamada e desalmada. Quando ganhou de um novo pai, a irmãzinha cheia de dengos, a coisa piorou. Brigou feio com a mãe e, no desejo de existir de alguma forma, roubou a pequena de um ano e doou como oferenda para ritual satânico. Descoberta, foi linchada pelos moradores do lugar. Sua sina era existir no ódio.
domingo, 5 de abril de 2009
Infernos
sábado, 4 de abril de 2009
Genealogia complicada
Consta que Luisa, a primogênita, morreu no dia do casamento, envenenada por emanações de flores secas da esponjeira e o noivo, desgostoso, voltou à terra natal. Entretanto, sussurra-se nas sombras que, à véspera das bodas, seu amantíssimo pai, sabendo-a sofredora de pressão arterial elevada, a pretexto de homenageá-la, mandou perfumar à exaustão seus aposentos com pétalas da referida flor.
Mantendo-se fiel à Maria Brites, o senhor José regressa anos depois e se casa com Arcângela, irmã mais nova de sua falecida noiva.
José contava que a inexperiência da menina lhe seria favorável já que despendia muito de seus dotes masculinos encantando a sogra. Entretanto, o Barão havia superado a tristeza pela morte de Luisa entre os lençóis da filha caçula e Arcângela, poderosa e vingativa, já exigia do fidalgo algo mais do que poderia lhe dar o velho Barão.
E assim, gerou-se descendência vasta e complicada.