Interaction V- gravura Antonio Peticov
Atravessar limpo, o ar da manhã
Por Juan Yanes
Era
uma loja
onde
se empenhavam lembranças.
Desde
o princípio
eu
sabia o que
queria entretanto,
para
evitar
ser
brusco,
perguntei por
um
dos objetos
que
estavam expostos.
Era
uma recordação que
estava colocada no fundo
das estantes
da esquerda.
Podia-se ler
o papel
timbrado
no cartão
lacrado em
que sobressaía: J.M.H. 1952.
Não
sei porque
me
chamou a atenção.
Ah, esse!,
disse-me o atendente,
é um
dos depósitos
mais
antigos
que
temos, senhor,
certamente
sua
proprietária
já
faleceu e nunca
pode ou
não
quis recuperá-lo. São
memórias
de sua
infância
em
Sidi Ifni. Lembranças,
provavelmente filtradas pela
nostalgia,
mas
muito
belas, eu
lhe
asseguro. Perguntei-lhe o preço,
mas
me
respondeu com
uma amável
evasiva.
Seu
preço
está dentro
do razoável,
me
disse. Se estiver interessado basta
falar,
estou certo
que
chegaremos a um
acordo
satisfatório.
As lembranças,
acrescentou, se deterioram com
o tempo,
ou
pelo
menos
mudam, você
sabe? Estão aqui,
aparentemente
imóveis,
fora
da cabeça
de seus
donos,
mas
pouco
a pouco
se transformam, se refinam, poderíamos assim
dizer.
A mesma
coisa
acontece com
as recordações que
temos na memória.
Isso
lhes
dá também
uma beleza
particular,
como
se fossem vivas
destilações do tempo.
Interessei-me pelo
grupo
de recordações que
estava perfeitamente
ordenado
atrás
de uma vitrine
de cristal,
envoltos
em
papel
verde
com
sua
etiqueta
correspondente,
também
lacrada. Refere-se a estes
aí?
Perguntou-me. São
alucinações.
Não
creia que
aceitamos todas, imagine! Apenas
aquelas que
são
realmente
extraordinárias.
Visões
exageradas da realidade,
algumas autênticas deformações,
quase
monstruosas. Não
é fácil
encontrar
gente
que
se desprenda delas. Os proprietários
de alucinações
verdadeiramente intensas têm muito
apego
a este
tipo
de pensamentos.
Para
nós
tem grande
valor
e são
muito
solicitadas. Também
os sonhos.
Estão justamente
ao lado
das alucinações, nesta outra
vitrina
de cristal.
São
os dois
tipos
de lembranças
mais
valiosos
desta casa
e os que
as pessoas
mais
apreciam. Temos uma clientela
muito
seleta
de compradores
de alucinações
e sonhos.
Tive
ímpeto
de interrompê-lo e explicar-lhe o motivo
que
me
havia levado
até
ali.
Contive-me e assim
lhe
dei chance
de me
mostrar
a série
de recordações que
estavam colocadas nas prateleiras
em
frente.
Aqui
você
tem histórias
de amor
e desamor.
São
lembranças
sobre
o desejo
em
geral,
o que
poderíamos chamar,
as paixões.
Determinados
episódios
tem, do ponto
de vista
comercial,
uma saída
aceitável
e despertam certo
interesse,
mas
se for sincero,
a maioria
são
histórias
de uma enorme
vulgaridade.
Olhei as etiquetas.
Ali
estava grande
parte
da escala
dos comportamentos
amorosos.
A entomologia
do sentimentalismo,
pensei.
Pareceu
animar-se quando
me
mostrou um
grupo
de recordações que
se destacava do resto
por
sua
quantidade.
Estes,
disse apontando as prateleiras
superiores,
são
muito
peculiares
e também
muito
apreciados por
nossos
clientes.
São
viagens.
Viagens
aos lugares
mais
insuspeitados do planeta,
lembranças
de aventuras
cheias
de riscos
e atribulações.
Algumas, autênticos
heroísmos,
creia-me, realizadas por
pessoas
comuns.
Mas
nem
todas são
façanhas
de grande
temeridade,
é claro.
Também
existem travessias
de enorme
placidez
e paisagens
de grande
beleza,
eu
lhe
asseguro. E não
apenas
a lugares
desconhecidos,
existem recordações de viagens
dentro
da própria
cidade
que
surpreendem por
sua
ternura
e complexidade. Deu-me a impressão
de que
exagerava, ou
melhor,
realmente
gostava de falar
das recordações que
guardava entre
aquelas quatro
paredes.
Continuou. Também
existem paisagens
de solidão
e de multidão.
Fez
o gesto
de me
convidar
a passar
para
uma sala
contígua,
para
continuar
explicando-me o resto
da coleção.
Não
sabia se ele
era
o proprietário
do estabelecimento
ou
um
simples
empregado.
Sem
duvida, era
uma pessoa
sensível,
conhecedora de seu
ofício.
Explicou-me que
tinham uma ampla
mostra
de recordações sobre
conversas,
muitas das quais
eram verdadeiras jóias,
e outra
coleção
muito
extensa
sobre
a morte.
Você
deveria vê-las com
mais
atenção
porque
abarcam uma gama
muito
ampla...
Mostrei
a ele
que
o que
havíamos visto
já
era
suficiente
e demos
a visita
por
concluída. Voltou-se, um
tanto
cerimoniosamente,
e me
perguntou. Você
me
dirá, senhor,
o que
é que
busca
exatamente,
o que
nos
oferece e veremos em
que
medida
podemos lhe
ajudar.
Aqui
tem, no entanto,
nosso
catálogo
onde
aparece a totalidade
dos depósitos
disponíveis,
que
atualizamos periodicamente. Fora
de catálogo
temos... Voltei a interrompê-lo, talvez
de uma forma
um
tanto
abrupta,
e lhe
disse: Não
quero comprar
nada.
Você
foi muito
amável
ao explicar-me, com
tanto
cuidado,
o que
existe em
sua
loja.
Quero empenhar
todas as minhas
lembranças.
Absolutamente
todas. Não
me
importa o dinheiro
que
me
dê.
Então
me
respondeu um
tanto
surpreso,
perdendo momentaneamente a compostura:
todos,
todos,
repetiu, aqui
não
existem lembranças
de vidas
completas, apenas
fragmentos
da memória.
As pessoas
não
se desprendem nunca
da totalidade
de suas
recordações, senhor.
Você
me
coloca em
uma situação
realmente
incômoda,
deveria pensar
muito
bem
sobre
isto.
Você
perderia sua
identidade,
não
lembraria quem
é nem
onde
vive. Além
disso, enquanto
dura
o depósito
estas lembranças
são
nossas e desaparecem de sua
mente.
Se alguém
as compra,
você
só
poderá recuperar
seu
dinheiro,
mas
não
as recordações... você
deve pensar
muito
bem
antes
de tomar
uma decisão
desta natureza.
Então
eu
lhe
disse o que
realmente
pensava desde
o início,
antes
mesmo
de por
os pés
naquela casa
de penhores.
Quero
começar
uma vida
sem
lembranças.
Quero atravessar
limpo
o ar da manhã,
me
entende? Ver
as coisas,
todas as coisas,
pela
primeira
vez.
Traduzido
para
o Português
em
10-03-2013 por
Angela Schnoor.